sexta-feira, 24 de junho de 2011

MEGAEVENTOS E REMOÇÕES DE FAVELAS


“A primeira violação é a violação do direito à informação”.


Na opinião da Relatora da ONU para o direito à moradia adequada, Raquel Rolnik, as remoções de favelas em nome das obras dos Megaeventos esportivos de 2014 e 2016 seguem um padrão nacional, onde o carro-chefe é a proposital falta de diálogo entre o poder público e as comunidades atingidas.

Em visita a favela Metrô Mangueira, no Rio de Janeiro, a convite da missão da Plataforma Descha (Direitos Humanos Econômicos Sociais e Culturais), Rolnik falou sobre as remoções e sua relação intrínseca com as violações do direito à moradia no Brasil pré-Megaeventos. A relatora também explicou porque as favelas são sempre os caminhos preferenciais por onde as obras da Copa e das Olimpíadas querem passar. Confira a entrevista:

1) Pressão por remoções, coação por parte da prefeitura, desalojamentos às pressas, indenizações inferiores aos valores das casas demolidas, reassentamentos em locais distantes. Tudo isso tem acontecido aqui no Rio de Janeiro em diferentes favelas. Este “novo” remocionismo promovido pelo Estado em nome das obras dos Megaeventos segue uma espécie de modus operandi?

Existe um padrão nacional, não só carioca. Há um procedimento que se repete, não sabemos se ele ocorre em 100%, em 10% ou em 1% dos casos, exatamente porque um dos elementos desse padrão é não oferecer qualquer tipo de informação. Não há informações sobre os projetos, sobre quais deles envolverão remoções, quantas pessoas serão removidas em cada projeto, quanto dinheiro será pago às famílias removidas, em que local serão reassentadas. Não existem essas informações em lugar nenhum do Brasil, ao contrário do que acontece, por exemplo, com informações sobre os projetos de infraestrutura. Se os consultarmos haverá como saber qual será a extensão das obras, além de quais serão os custos. Agora, no caso das remoções não tem nada disso: não há informação. Então fica difícil saber até onde vai este padrão.

 2) Que tipo de violações o Estado tem cometido?

A primeira violação é a violação do direito à informação. As comunidades diretamente atingidas, quando recebem alguma informação, recebem de maneira incompleta. As negociações são feitas pessoa a pessoa, família a família, dividindo a comunidade, muitas vezes por meio de ameaças e pressões. A prefeitura negocia individualmente, consegue remover um morador, derruba sua antiga residência e isso vai degradando toda a comunidade, de modo que fique insuportável continuar no local. Às vezes nem se dão ao trabalho de demolir as casas por completo, eles quebram só o suficiente para marcar o espaço, para criar um ambiente super degradado para os moradores. As pessoas ficam com medo.

3) As demolições e remoções ocorrem prioritariamente em posses e favelas. As prefeituras concebem como sendo mais legítimas as remoções ocorridas nestes locais?

Cada morador tem de ter o direito de optar entre uma compensação financeira e o reassentamento. Isso independe da condição de propriedade da terra. Seja ela posse ou não, seja ela registrada ou não. Uma comunidade como essa, há 36 anos neste local, tem o direito, no âmbito das legislações internacional e brasileira de ser respeitada. E a segunda grande violação é a maneira como são feitas estas indenizações e as propostas de reassentamento. Muitas vezes não são oferecidas quaisquer alternativas, por exemplo, aos locatários. Quem era locatário nessa comunidade acabou indo embora com medo do que poderia acontecer. As indenizações, quando são oferecidas em dinheiro, em geral, são extremamente baixas. Não cobrem o custo da compra de uma moradia melhor do que o imóvel demolido, num lugar próximo. Aqui há uma proposta de reassentamento próximo, o que difere do padrão nacional de remoções, porém, ao que tudo indica, as condições desse conjunto habitacional para o qual as famílias foram levadas são precárias. Os reassentamentos também implicam em custos que essas famílias não podem pagar. Além disso, destaco a maneira como todo esse processo foi feito: com ameaças, com pressões, inclusive com um trator chegando, negociando caso a caso e já demolindo de forma a estabelecer um ambiente degradado. Isso tudo também faz com que os moradores, em desespero, aceitem qualquer indenização e qualquer proposta.

4) As condições em que se encontram a favela Metrô Mangueira depois da ação da Prefeitura ilustram, como a senhora disse, um padrão estatal ao lidar com os espaços favelados no caminho das obras dos mega eventos esportivos. Como este padrão funciona?
Situações como essa eu já testemunhei em Belo Horizonte, em São Paulo e no Brasil inteiro. É um modelo que desrespeita a legislação internacional, o Pacto dos Direitos Econômicos Sociais e Culturais, todos os tratados que têm a ver com o direito à moradia, além da própria constituição brasileira. É uma coisa chocante. E acontece aonde? Em cima das favelas! Em cima dos assentamentos informais. Se formos olhar quem são os removidos pelas obras de infraestrutura, veremos que são os moradores de assentamentos informais. Por quê? Qual é a lógica? Pensam, “Ah, tudo bem passar por cima de favelas. Não vai dar tanto trabalho, não vai sair tão cara a desapropriação, o povo não vai entrar na justiça para discutir o valor, não serão criados os precatórios que se criam nas áreas de classe média”. Então, se querem fazer um estacionamento para o Maracanã, aonde será construído? Na favela! Não é no posto de gasolina que está caindo aos pedaços, vazando combustível para o subsolo, não é em qualquer outro terreno. Vão pra cima das favelas porque elas são os locais mais vulneráveis. Justamente, nos locais onde o direito à moradia deveria ser mais respeitado. Porque quando você tem um desapropriado de classe média-alta, sem dúvida, é um trauma, é difícil. Mas, normalmente, essa pessoa tem alguma alternativa, ela tem para onde ir, tem dinheiro para morar em algum lugar enquanto ele negocia o valor na justiça. A população favelada não.

5) Qual é o papel da Relatoria Especial da ONU para o Direito à Moradia Adequada nessa missão da Plataforma Dhesca? De que forma a Relatoria pode intervir objetivamente para alterar essa situação de múltiplas violações de direitos?

A Relatoria Internacional da ONU, para realizar uma missão no país teria de negociar com a missão permanente do Brasil em Genebra. Esta conversa é articulada pelo Itamaraty e, normalmente, é feita uma agenda oficial e outra com a sociedade civil. Essa não é uma missão da Relatoria Internacional. Eu fui convidada para participar da missão da Plataforma DESCHA e acompanhar o seu relator. Ele, através destas missões no país, trabalha para tentar criar espaços de intermediação e de negociação para melhorar e superar a situação que aí está.

Mesmo assim, a Relatoria Internacional da ONU dispõe de alguns instrumentos. Nós recebemos denúncias de violações do direito à moradia - e qualquer pessoa, qualquer ONG, ou entidade pode enviar denúncias. Ano passado, recebemos muitas e de vários lugares do Brasil. Aí eu usei um instrumento que nós temos, que é enviar uma carta de alegação para o governo. Então eu peguei todas essas denúncias, me certifiquei que estavam vindo de fontes sérias como Defensorias Públicas, Ministério Público etc., reuni estas denúncias, mandei uma carta para o governo brasileiro em dezembro. Há um prazo de um mês para que o governo que recebe este documento se pronuncie. É uma carta de alegação, é o mesmo que perguntar: “Recebemos estas denúncias. Elas são verídicas? Se são, há como dizer que medidas estão sendo tomadas?” Não recebi resposta alguma. Aí decidi usar um segundo instrumento que é um comunicado de imprensa internacional, externando minha preocupação com o tema. Este tipo de comunicado, normalmente, tem certa repercussão e o país em questão procura tomar alguma providência. No caso do Brasil, quando este comunicado saiu na imprensa, eu recebi um telefonema da Secretária dos Direitos Humanos, Maria do Rosário, informando que o Governo Federal criou um grupo de trabalho com o Ministério dos Esportes, Ministério das Cidades e Secretaria Geral da Presidência para tratar dessa questão acompanhando-a no âmbito federal.



Ouça na íntegra a entrevista de Raquel, clique no link abaixo:

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